domingo, 17 de fevereiro de 2013


Na linguagem oral, que é o carro-chefe de qualquer mudança linguística, é possível observar certa hesitação no emprego das construções com pronome relativo. São corriqueiras na fala frases como a seguinte:
O sorvete que eu mais gosto é o de morango.
Ao escrever, ou seja, quando refletimos melhor sobre a estrutura do pensamento, percebemos, porém, a falta de uma preposição. Gostamos de alguma coisa, não é? Então esse “de” deveria ter aparecido na frase. Mas em que posição? Antes do pronome relativo (que), de modo que teríamos o seguinte:
O sorvete de que eu mais gosto é o de morango.
Num caso muito simples como esse, a elipse da preposição não chega a prejudicar a compreensão do texto. É algo que as pessoas dizem, mas corrigem nos textos escritos, sempre mais formais.
São problemáticas as situações em que a dificuldade de usar o pronome relativo, antecedido da correta preposição, compromete a compreensão do texto.
CUJO, esse desconhecido
Entre os pronomes relativos, figura a forma “cujo”, da qual muita gente foge, por assim dizer, por achar complicado o seu uso. “Cujo” (e suas variações “cuja”, “cujos” e “cujas”), além de retomar o termo antecedente (como fazem todos os outros pronomes relativos), estabelece com esse termo uma relação, grosso modo, de posse (é como se ele embutisse em si uma preposição “de”). Veja o exemplo:
moça cujos olhos eram tristes observava-o com insistência.
Eram tristes os olhos da moça [moça cujos olhos = olhos da moça].   Emprega-se o pronome “cujo”, sempre em concordância com o termo que lhe é posterior, quando os dois substantivos (o anterior e o posterior ao “cujo”) se relacionam por meio de uma preposição “de”. A dificuldade de usar os relativos, sobretudo o cujo, advém, provavelmente, do fato de introduzirem orações cujos termos não estão na ordem direta.
A moça que os olhos dela…
Na linguagem falada, não seria difícil encontrar uma “tradução” para a frase acima mais ou menos nos seguintes moldes:
moça que os olhos dela eram tristes observava ele com insistência.
Na linguagem oral, é muito comum ouvir algo assim. Em textos escritos, formais, nos quais deve prevalecer a norma culta, recomenda-se não usar essas estruturas pronominais.
“Poliglota” na própria língua
Note-se que, do ponto de vista da linguística, que é a ciência da linguagem, nada disso constitui “erro”.  Construções como essa, ao se tornarem corriqueiras – e não fenômenos isolados – passam a configurar determinado registro da língua.
Um registro, seja ele qual for, está ligado ao ambiente linguístico do falante, que, naturalmente, evoca grupos sociais, regiões, situações específicas etc. É bem provável que você já tenha ouvido dizer que o ideal é ser uma espécie de “poliglota na própria língua”. Os que dizem isso querem mostrar que podemos lançar mão de diferentes registros linguísticos, escolhendo-os de acordo com a situação.
O registro oral é apreendido espontaneamente pelos falantes de uma língua. Note que, num país das dimensões do Brasil, mesmo esse registro oral não é idêntico em todo o seu território. Daí a ideia de haver vários registros da língua, o que confronta a ideia de haver o “certo” e o “errado”.
Ocorre, porém, que o registro formal, a chamada língua-padrão, requer estudo, aprendizado, aperfeiçoamento. Os textos científicos, filosóficos e jurídicos, por exemplo, sempre são escritos de acordo com a norma culta. De modo geral, a pessoas que precisam exprimir pensamentos mais complexos apresentam maior domínio da variante culta, pois já foram expostas à leitura de outros autores que assim se exprimiram.
Na prática, a mesma pessoa que, entre amigos numa reunião social, diz “eu chamei ele” evita essa construção numa situação de formalidade, optando por “eu o chamei”.  Isso é ser o tal “poliglota na própria língua”.

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