sábado, 3 de maio de 2014

IBGE sob ataque

Para evitar que informações negativas sobre o desempenho da economia causassem danos à candidatura de Dilma Rousseff, governo intervém politicamente no IBGE, um respeitado órgão público que deveria primar pela independência

Claudio Dantas Sequeira (claudiodantas@istoe.com.br) e Wilson Aquino (waquino@istoe.com.br)
É comum que em regimes de exceção o governo manipule dados oficiais para tentar legitimar-se no poder e não perder apoio popular. Numa democracia, esse tipo de atitude é condenável. Mas foi exatamente isso que o governo federal decidiu fazer. Levando ao pé da letra aquela máxima do ex-ministro de FHC, Rubens Ricupero, de que “o que é bom a gente mostra, e o que é ruim a gente esconde”, o governo impediu que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgasse este ano o resultado da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua). Este é um estudo novo desenvolvido com amostragem e abrangência diferentes da tradicional Pesquisa Mensal de Emprego (PME) com a qual o IBGE avalia a situação do mercado de trabalho no País. Ao não divulgar o levantamento, o objetivo do governo foi o de evitar que se desse conhecimento à população que o desemprego em 2013, nessa nova pesquisa, chegou a 7,1% na média nacional, que o Nordeste registra índice de 9,5%, quase o dobro do do Sul, e que 20% dos jovens nordestinos aptos para o mercado não têm ocupação.
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REAÇÕES
Técnicos do IBGE protestaram em frente à sede do instituto
no Rio, na quarta-feira 16, contra a ingerência do governo Dilma
A divulgação dos dados agora poderia ser usada para contrapor-se ao patamar de 5% de desemprego ostentado pelo governo Dilma com base no PME, seu estudo tradicional. O PNAD considerou uma amostra de 211 domicílios de 3,5 mil municípios. É, portanto, muito mais abrangente do que a pesquisa que vem sendo divulgada pelo governo, baseada em cálculos de seis regiões e não no Brasil inteiro. Apesar dessa inequívoca constatação, orientados pelo Planalto, parlamentares de base de apoio ao governo no Congresso passaram a questionar a nova metodologia.
Antes mesmo de conhecidos os números da pesquisa, a ex-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, que hoje lidera a tropa de choque do governo no Senado, encaminhou requerimento à ministra do Planejamento, Miriam Belchior, propondo discutir a nova sistemática do IBGE “com os senadores e governos estaduais, inclusive com os próximos governos eleitos”. O requerimento ao Planejamento foi a senha para que a presidente do IBGE, Wasmália Socorro Barata Bivar, suspendesse a divulgação da PNAD e decidisse criar um grupo de trabalho para rever a metodologia. Bivar só não esperava a forte reação dos técnicos, que ficaram indignados com a ingerência política.
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Em meio à polêmica, a diretora de Pesquisa, Márcia Quinstlr, e a coordenadora da Escola Nacional de Estatísticas, Denise Britz, pediram exoneração de seus cargos. Outros coordenadores ameaçam segui-las e 45 técnicos também se manifestaram por meio de um abaixo-assinado, prometendo cruzar os braços caso a pesquisa não seja divulgada. “Instalou-se no IBGE um clima geral de indignação e estranhamento”, acusou o sindicato nacional dos funcionários do instituto, ASSIBGE. Na quarta-feira 16, cerca de 200 servidores se reuniram para protestar em frente à sede da Diretoria de Pesquisas do órgão, no número 500 da Avenida Chile, no centro do Rio. “O IBGE não pode submeter a metodologia de uma pesquisa que já está em campo à vontade de políticos atuais ou de candidatos”, bradava ao microfone o técnico Antônio Ângelo. Ele reclamou que a decisão de suspender a divulgação da PNAD sequer foi levada a conhecimento prévio do corpo técnico.
Diretora da ASSIBGE, Ana Magni reclamou da tutela partidária num órgão reconhecido pelo rigor científico. “Nosso trabalho é rigorosamente construído a partir de conceitos científicos e padrões técnicos e não pode ser adaptado a qualquer mudança legislativa ou política, que muitas vezes envolve interesses particulares ou específicos”, afirmou. Suzana Lage Drumond, também da ASSIBGE, concorda. “Agora é a PNAD Contínua, amanhã é outro projeto. A autonomia do IBGE está em primeiro lugar e não vamos abrir mão disso”, disse. Para Suzana, há uma clara tentativa de subjugar o órgão aos interesses dos governantes de plantão, uma estratégia que passa pelo sucateamento do IBGE, com cortes orçamentários e a terceirização da mão de obra, em vez da realização de concursos públicos. O quadro de funcionários é antigo e 70% devem se aposentar até 2015. A ASSIBGE compara a situação atual com o que ocorreu na Argentina, em 2007, quando o então presidente Nestor Kirchner, insatisfeito com o alto índice de inflação, determinou intervenção no Instituto Nacional de Estatísticas e Preços (Indec), o IBGE de lá.
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DEMISSÃO
Proibida de divulgar levantamento desfavorável ao governo, 
a diretora de Pesquisa do IBGE, Márcia Quinstlr, pediu para sair
 
Na última semana, a presidente do órgão empreendeu uma ginástica verbal para rejeitar a tese de interferência política. Sem conseguir se explicar com clareza, ela acabou atribuindo a suspensão da divulgação dos resultados a um mero “equívoco” na interpretação sobre o prazo para a entrega dos dados de renda domiciliar. Em texto publicado na internet, a Executiva da ASSIBGE deu outra versão. “Foram 14 edições do Fórum SIPD (Sistema de Pesquisas Domiciliares) e dezenas de eventos nacionais e internacionais que contaram com representações governamentais, institutos de pesquisa, universidades e ampla participação da sociedade em geral nesta formulação”, acrescenta.
Alçada ao cargo por Dilma em 2011 como primeira mulher a comandar o IBGE, Wasmália Bivar provém dos quadros do próprio instituto, assim como seu antecessor, Eduardo Pereira Nunes. Como técnicos, deveriam primar pela manutenção da independência de um órgão que se tornou referência nacional e internacional desde sua fundação em 1938. Mas, ao longo de sua história, o IBGE já foi alvo de ataques semelhantes. Na década de 1970, o instituto mostrou que o chamado “Milagre Econômico” da ditadura não se refletiu em distribuição de renda. É conhecido o episódio em que o então ministro da Fazenda Delfim Neto tentou forçar a FGV a manter o índice de inflação em 15%, enquanto o IBGE cravava uma taxa de 26%. No início da década de 1990, o ex-presidente Fernando Collor, insatisfeito com os resultados desfavoráveis disseminados pelo IBGE, tentou esvaziar o instituto, ao deixar de contratar os 180 mil temporários para a realização do Censo. Em vão. Desde então, o IBGE se autoproclamou a “ilha de resistência” às tentações da “direita pelega” em manipular as estatísticas. Passou a atuar sob influência do chamado “núcleo de economistas” do PT, que aos poucos galgaram a postos de comando, sobretudo depois da chegada de Lula ao poder. Infelizmente, o que se vê agora é a negação desse passado.
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Intromissões indevidas
Não é apenas o IBGE que tem sua credibilidade arranhada com uma inoportuna intromissão política em sua gestão e métodos de trabalho. Há poucas semanas, por vias distintas, mas não menos inadequadas, o IPEA havia revelado surpreendente fragilidade técnica ao errar feio numa pesquisa sobre o percentual de brasileiros que justificariam agressão às mulheres que usassem roupas provocativas. A queda de qualidade nos serviços prestados por uma das mais respeitadas instituições de pesquisas do Brasil, responsável histórica por embasar o planejamento econômico nacional, é fruto, segundo seus próprios técnicos, da “ideologização” de suas funções, agora dirigidas a marqueteiros interesses governamentais.
Escândalos recentes também mostram que outro símbolo de excelência do Estado brasileiro – a Petrobras – vem sendo abalado por conta do aparelhamento político que, além de provocar o gigantismo da estatal, leva a decisões estapafúrdias. Em parte, é essa uma das razões que levaram a empresa a perder R$ 201 bilhões de patrimônio e vale hoje metade do que valia em 2010. A mistura de aparelhamento e política populista não costuma ter resultados positivos.
A combalida Eletrobrás, que nunca foi um modelo de gestão, já acumula uma conta de cerca de R$ 20 milhões que deve estourar no ano que vem, tudo para atender aos desejos do Palácio do Planalto.

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